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Grupo de Estudos

GE (leitura/discussão) – Música indígena e teoria de gênero: Maria Ignez Cruz Mello

Esse encontro foi dedicado a um primeiro contato com o trabalho de pesquisa da compositora e musicóloga brasileira Maria Ignez Cruz Mello. De forma introdutória, fizemos a leitura de dois textos: um de Susan Fonseca, intitulado Etnografía y creación contemporánea: una aproximación desde el legado de Maria Ignez Cruz Mello, no qual a autora apresenta a pesquisa da Maria Ignez de modo panorâmico; e outro da própria Maria Ignez, intitulado Relações de gênero e musicologia: reflexões para uma análise do contexto brasileiro. Através dessas leituras pudemos compreender como se articulam os dois eixos principais do trabalho da Maria Ignez: a teoria de gênero e a música indígena.

Maria Ignez realizou ampla pesquisa (teórica e de campo) sobre o Ritual Iamurikuma, o maior ritual feminino do Alto Xingu, MT. Essa pesquisa resultou em seu trabalho de doutorado, intitulado Iamurikuma: Música, Mito e Ritual entre os Wauja do Alto Xingu (UDESC, 2005). No resumo de sua tese, ela diz:

“Esta tese é uma etnografia do ritual de iamurikuma entre os índios Wauja, do Alto Xingu. Com base na mitologia e no discurso nativo, o universo em torno deste ritual é analisado especialmente em sua dimensão musical. O ritual de iamurikuma, realizado pelas mulheres, é entendido como um dos lados de um complexo músico-ritual que envolve humanos e ‘espíritos’ apapaatai, tendo como sua outra face o mundo das flautas kawoká, que são tocadas pelos homens e não podem ser vistas pelas mulheres. A música, através de sua formalização e do jogo em torno dos sentidos e das proporções, é considerada o elemento central do ritual, constituindo a forma ideal de expressão dos afetos.” (MELLO, 2005, p. 4)

niversidade Federal de Santa Catarina

Desenho do ritual de Iamurikuma feito por Ajoukuma Waurá. Figura retirada da capa da tese de doutorado de Maria Ignez Cruz Mello.

A pesquisa de doutorado de Maria Ignez é bastante extensa e inclui: um relatório da sua pesquisa de campo realizada com os Wauja; um estudo sobre a sociedade xinguana, abordando temas como sistema sócio-cultural, língua, ritos, cosmologia e xamanismo; um estudo comparado entre os rituais iamurikuma e kawoká; uma descrição detalhada do ritual de iamurikuma que ela pôde observar presencialmente em 2001, incluindo algumas transcrições musicais; e algumas análises musicais das canções.

Em seu trabalho, Maria Ignez observou a forte marcação dos papéis de gênero entre os Wauja, que inclui esta a radical separação entre os rituais kawoká e iamurikuma. Enquanto iamurikuma seria um ritual exclusivamente feminino e estritamente vocal, o kawoká seria um ritual exclusivamente masculino e concentrado na música instrumental através do uso das flautas (instrumentos que não podem ser vistos pelas mulheres, sob risco de sofrerem estupro coletivo como punição). Porém, a despeito dessa aparente separação radical entre os rituais, Maria Ignez conclui a partir da análise dos dois repertórios que a música iamurikuma é de fato a música kawoká e que tal oposição não se sustenta exatamente no conteúdo musical. A partir desse eixo de leitura, ela desenvolverá sua hipótese de que esses rituais são complementares e constituem um complexo mítico-musical único.

Nosso encontro também teve a participação do compositor e musicólogo Acácio Piedade (UDESC), que acompanhou de perto o trabalho de pesquisa da Maria Ignez. Ele nos ajudou a compreender melhor algumas especificidades da sociedade Wauja. Ele nos contou, por exemplo, como o sexo é um assunto corriqueiro e tratado sem tabu entre os Wauja. Perceber esta e muitas outras diferenças entre os Wauja e a cultura branca ocidental nos conduziu à discussão sobre a impossibilidade de ler as questões de gênero entre os Wauja exclusivamente a partir da nossas experiências e perspectivas. O debate contribui muito para a importância de se pensar numa pluralidade inerente à noção de feminismo.

Para complementar nossas leituras, assistimos também o filme As Hiper Mulheres (2011) que mostra justamente todo o processo de preparação e realização do ritual Iamurikuma no Alto Xingu.

 

Maria Ignez Cruz Mello (1962–2008)

Maria Ignez

“Começou seus estudos de piano aos 3 anos de idade, e com esta idade começou a compor pequenas peças. Em 1969 ingressou no conservatório dramático musical de sp, onde completou o curso de piano como bolsista durante 10 anos, se formando em 1979. Foi premiada com no concurso de Composição “Troféu Bach”, promovido pelo Centro de Pesquisas Físicas, Biológicas e Musicais de São Paulo, durante quatro anos consecutivos:1975, 1976, 1977 e 1978. Trabalhou um tempo com demonstradora de piano, ainda criança, na loja Mappin em SP, e mais tarde como regente do coral da Justiça de SP em 1980-81. Participou do Festival de Inverno de Campos de Jordão em 1981, curso de regência coral com Henrique Gregori. Em 1981 ingressou no curso de composição da UNICAMP, tendo estudado com Almeida Prado e Damiano Cozzella e se formado em 1986. Fez cursos de composição eletroacústica com Conrado Silva em1986. Viveu na Alemanha e na Austria entre 1987 e 1989, tocando em diversos grupos, estudando música e alemão. De volta ao Brasil 1990, em SP, cantou no coral Psychophármacon, trabalhou como produtora cultural e abriu uma escola de música, Casa Dois. Mudou-se para Floripa em 1994, dois anos depois do nascimento de sua filha e de Acácio, Júlia. Depois do mestrado e doutorado em Antropologia na UFSC, sob orientação de Rafael Bastos,ingressou como profa. da UDESC em 2005. Em 2007 foi curadora da mostra de arte indígena NAAKAI: a trama ritual na vida wauja, Museu de Arte da UFPR.” (Biografia escrita por Acácio Piedade, disponível em: https://www.facebook.com/media/set/?set=a.498650460194838.1073741828.498644663528751&type=1)

 

 

Leituras

 

Filme

“As Hiper Mulheres”. Dir. Takumã Kuikuro, Leonardo Sette e Carlos Fausto | 80 min. 2011. PE

https://www.youtube.com/watch?v=wDpVU0hFh0g

 

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Vozes

Vozes – Barbara Biscaro

Bárbara Biscaro em "A menina Boba"
Barbara Biscaro em “A menina Boba”

Nesse encontro, inauguramos a série vozes com a presença da atriz, cantora, performer-criadora Barbara Biscaro. A Barbara, em passagem por São Paulo nos visitou e contou um pouco sobre seus trabalhos e projetos. Ela é de Florianópolis e trabalha na confluência do teatro com a música, especialmente no uso da palavra cantada na cena e nas dramaturgias para o teatro influenciadas pela linguagem musical. Ela fez seu doutorado em teatro na UDESC, com uma tese a respeito da vocalidade e da escuta. É curadora e organizadora do festival Vértice Brasil, ligado a uma rede internacional de mulheres de teatro chamada Magdalena Project. O Vértice existe há dez anos e vai realizar seu quinto festival no ano que vem.

A Barbara contou um pouco sobre as motivações para a criação de um encontro internacional de teatro feito por mulheres, o Vértice Brasil. A ideia foi conversarmos sobre estratégias de sobrevivência de grupos como a Sonora a partir da experiência dela em projetos semelhantes.  Ela falou sobre o formato dos eventos que organiza, sobre o esforço contínuo de horizontalidade nos debates em torno das agendas feministas, sobre a necessidade do convívio presencial com mulheres de outras culturas etc. Além disso, a Barbara nos apresentou  alguns de seus trabalhos artísticos mais recentes e de como o feminismo influencia sua perspectiva criativa, já que age criticamente no olhar do outro sobre a mulher, a atriz, a cantora.

O projeto Vértice Brasil faz parte da rede internacional Magdalena Project. Essa rede surgiu em 1986 no país de Gales, quando várias atrizes em um festival na Itália se deram conta de pouca participação de mulheres nos papéis de direção. Reflete sobre os papéis de atuação da mulher nos espetáculos, sobre o lugar da atriz e da cantora ser reservado à mulher como lugar do fetiche: a diva, a estrela, o objeto, mas nunca criadora do próprio discurso. Essas atrizes quiseram criar um festival organizado por mulheres e que foi se espalhando e assumindo um papel importante nas artes cênicas e no ativismo feminista. Hoje o Magdalena Project existe em mais de 24 países.

“O Projeto Magdalena tem o compromisso de fomentar a consciência da contribuição da mulher ao teatro e apoiar a experimentação e a pesquisa, oferecendo oportunidades concretas para o maior número possível de mulheres. Ele conta com uma estrutura singular que lhe permite funcionar internacionalmente e de ser adotado e ampliado por mulheres em todo o planeta.” (site Vértice Brasil)

Na segunda parte do encontro, a Bárbara falou sobre alguns dos seus trabalhos artísticos, como o espetáculo de 2010 – A menina boba. Esse trabalho toca no empoderamento discursivo das mulheres do início do século XX, especialmente da poetisa Oneyda Alvarenga.

“O espetáculo mistura as linguagens da música e do teatro para tecer uma dramaturgia baseada na obra da poetisa Oneyda Alvarenga e no ciclo de canções homônimo “A Menina Boba”, do compositor Cláudio Santoro. Explorando a voz cantada e falada em cena, o movimento abstrato e elementos da biografia e obra poética de Oneyda, a atriz-cantora tece a biografia da poetisa, misturando elementos reais e fictícios. As canções transitam desde o universo dodecafônico criado por Santoro até as modinhas imperiais brasileiras, criando um universo sonoro da cena em constante diálogo com o formato teatral da encenação.” (sinopse retirada do site de Barbara Biscaro)

 

Links recomendados

www.barbarabiscaro.blogspot.com.br

www.facebook.com/espetaculorecita

www.verticebrasil.net

www.themagdalenaproject.org/pt-br

 

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